Letrado 103

A nova interpretação dos negócios jurídicos

(*) José Eduardo Vuolo

O Código Civil relativizou o princípio do pacta sunt servanda e deu abrigo à boa-fé na interpretação dos negócios jurídicos, orientando os operadores do direito a valorar mais a intenção constante nas declarações de vontade do que o sentido literal da linguagem, conforme prescrevem os arts. 112 e 113 do referido compêndio.

Estabeleceu ainda o legislador que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, cabendo aos contratantes o dever de guardar, assim na conclusão como na execução, os princípios da probidade e boa-fé, segundo dispõem os artigos 421 e 422 do Código Civil.

Na atividade do fomento mercantil, não temos dúvida alguma em afirmar que as empresas cumprem sua função social ao prestar serviços, distribuindo riqueza com a aquisição de duplicatas ou a antecipação de recursos para a aquisição da matéria-prima. Assim, mesmo que de forma indireta, geram nessas operações vários empregos e são contribuintes de polpudos recolhimentos fiscais.

E a boa-fé, aonde entra? Ora, comprar um título acreditando que ele será liquidado ou antecipar recursos com a finalidade de se quitar a operação com papéis são comportamentos que, em algumas circunstâncias, julgamos além dos limites. É compreensível que no mundo capitalista as sociedades comerciais busquem sempre o lucro, mas no caso específico das factorings o risco corrido para alcançar tal objetivo é admirável e espantoso, exagerando-se da boa-fé.

Recentemente, por exemplo, três situações julgadas pelo Judiciário Paulista bem retrataram a sintonia do fomento mercantil com os requisitos da legalidade, equidade e ética.

Em um dos casos, estava em pauta a análise de um contrato de fomento à produção com garantia hipotecária. A factoring antecipou, nos limites da função social do contrato, recursos para a compra de matéria-prima e, por certo, garantiu-se com imóvel que servia de residência do sócio. A devedora, por sua vez, alegou que a operação mascarava empréstimo com juros extorsivos e o Tribunal, concluiu que o contrato era título líquido, certo e exigível, validando-se, pois, o negócio realizado e a garantia dada.[1]

Noutra demanda, a questão tormentosa era o exercício do direito de regresso a partir de operação de fomento convencional. A empresa de fomento mercantil, autorizada pelo disposto no art. 286 do Código Civil, contratou com a fomentada a responsabilidade pela solvência dos títulos cedidos. Como não foram pagos os respectivos créditos, a factoring se viu diante da contingência de apontar as notas promissórias para protesto, mas a fomentada sustou essa operação alegando, em síntese, que não poderia ser contratado o direito de regresso, sob pena de a operação ser típica de instituição financeira. O Tribunal, no entanto , não só reconheceu a legalidade da nota promissória como título hábil para o exercício do direito de regresso, como também entendeu possível a sua contratação, a partir do princípio constitucional da legalidade. E, como não há lei que a proíba, é possível, sim, a contratação do direito de regresso. Ainda nessa decisão, citando regras de direito cambiário, acrescentou o Relator Des. Campos Mello: “... Não há nenhum fundamento legal a sustentar a assertiva de que nas operações de factoring em que haja endosso de títulos não é possível o exercício do direito de regresso e que o risco do negócio deve ficar concentrado no endossatário...”, concluindo, por fim: “... se os títulos são transferidos por endosso, esse endosso estará necessariamente sujeito ao regime da Lei Cambiaria, que assegura o direito de regresso ao endossatário e não prevê modalidade de renúncia.[2]

E, finamente, nos deparamos com a questão envolvendo a empresa de fomento mercantil que buscou a satisfação de duplicata confirmada pelo sacado por e-mail. Ao apontar o título em cartório, o devedor sustou o protesto, ocasião em que o Tribunal valorou a cautela da empresa de fomento, entendendo que o argumento do devedor de que as mercadorias não tinham sido entregues era ofensivo, na medida em que : “...a boa-fé objetiva (CC, art. 422) exigia do autor informasse corretamente e de forma expressa acerca do que fora questionado. É o que propugna o dever acessório de informação”.[3]

Como se pode observar em todas essas demandas, o Judiciário considerou a boa-fé objetiva nos negócios. Se a fomentada recebeu dinheiro para a compra de matéria-prima e não o devolveu, se o contrato previu a solvência dos títulos pelo cedente ou se o sacado foi consultado e confirmou a veracidade e existência do título cedido, não há como negar, em hipótese alguma, o exercício do direito pela empresa de fomento mercantil, sob pena de ofensa às mais comezinhas regras de nova interpretação do direito.

 


(*) José Eduardo Vuolo é advogado com graduação pela PUC/SP, especialista em fomento mercantil, pós-graduado em processo civil pela FMU, membro da extinta comissão jurídica da ANFAC e assessor do Tribunal de Ética da OAB/SP.

 

 

[1] Agravo de Instrumento nº 0019454-49.2012.8.26.0000, julgado em 18.06.2012, 23ª Câmara de Direito Privado

[2] Apelação nº 0013515-83.2009.8.26.0068, julgado em 30.08.2012, 22ª. Câmara de Direito Privado

[3] Apelação nº 0022696-34.2011.8.26.0361, julgado em 20.02.2013, 28ª Câmara de Direito Privado

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