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Publicado em 22/03/2018

Crise coloca sob holofotes poder de mercado dos bancos (Valor Econômico)

O bom desempenho dos grandes bancos em meio à pior recessão da história brasileira comprovou a solidez do sistema financeiro do país, porém colocou sob os holofotes o poder de mercado dessas instituições – que não era desconhecido, mas se mostrou maior do que se podia imaginar.

Se na crise de 2008 os bancos americanos e europeus viram seus resultados despencar, as cinco maiores instituições do país – Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Santander e Caixa – absorveram mais de R$ 360 bilhões em calotes no crédito desde 2014 sem que sua rentabilidade, sempre entre as maiores do setor em comparações internacionais, fosse substancialmente afetada.

Mesmo após a perda com inadimplência e todos os outros custos, inclusive tributários, o lucro somado desse grupo de bancos atingiu R$ 244 bilhões entre 2014 e 2017. A cifra supera todo o ganho líquido de 307 companhias não financeiras abertas no mesmo período, que alcançou R$ 56 bilhões (ou R$ 120 bilhões sem os prejuízos da Petrobras), conforme levantamento do Valor Data.

A capacidade dos bancos brasileiros de sustentar lucros e retornos elevados em qualquer cenário econômico reflete um sistema moldado numa trajetória que envolve inflação alta, câmbio instável e sucessivas crises de diferentes naturezas, dizem especialistas e agentes do setor.

Esse ambiente tipicamente turbulento potencializou a preocupação do Banco Central (BC) com a estabilidade financeira – no que foi bem-sucedido, já que o Brasil não viveu uma crise bancária de grandes proporções nas últimas décadas. Mas se tal escolha evitou desastres maiores, o foco na competição ficou em segundo plano.

Somente agora a palavra concorrência começa a ser ouvida com mais frequência em conversas com reguladores e banqueiros. Dos dois lados, há uma preocupação em dizer que a concentração do mercado bancário brasileiro em cinco grandes instituições é similar à situação que se observa em outros países e, especialmente, não implica baixa competição.

O que se nota na prática, porém, é o Banco Central envolvido em uma série de iniciativas para reduzir as barreiras de entrada no mercado de crédito e diminuir as taxas de juros cobradas de indivíduos e empresas – o que sinaliza empenho em resolver um problema que não é reconhecido oficialmente.

Em outra frente, o BC deixou de lado divergências históricas e firmou neste ano um memorando de cooperação com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para análise de processos de fusões, aquisições e concorrência. Se antes a autoridade monetária decidia sozinha sobre transações no setor, agora só vai fazê-lo por conta própria se expressar formalmente preocupação com risco sistêmico.

Após a aquisição de HSBC e Citi, respectivamente, Bradesco e Itaú receberam, pela primeira vez, um veto antecipado do Cade para compra de novas instituições bancárias no país por 30 meses – sem que o Banco Central tenha discordado da decisão. Embora representem uma mudança de postura do regulador, os vetos têm pouco efeito prático. Primeiro porque não existem no radar de aquisições instituições de tamanho suficiente para mudar a configuração atual do sistema e, segundo, porque as transações que definiram o grau de concentração do mercado brasileiro se deram antes deles.

Itaú, Bradesco, BB, Santander e Caixa detinham 83% dos ativos totais do sistema e 87% do total de empréstimos em setembro. O Índice de Herfindahl Hischman (IHH), que indica alta concentração de mercado acima de 1.800 pontos, estava em 1.741 pontos em junho.

Nas últimas quatro semanas, o Valor conversou com reguladores, representantes dos bancos, analistas e estudiosos do setor para entender os fatores que tornaram os bancos brasileiros tão resilientes e por que estão entre os mais rentáveis do mundo, a despeito de serem menos alavancados. Alguns só falaram na condição de anonimato. Também foi feito um levantamento comparando o desempenho e a rentabilidade de 27 bancos, entre brasileiros, americanos, europeus, canadenses e australianos, com dados a partir de 2005.

É consenso entre as fontes ouvidas que o sistema bancário brasileiro não é exatamente imune a crises. Os conglomerados atuais se formaram, em grande parte, com a absorção de instituições que sucumbiram às turbulências das últimas décadas. Na última grande rodada de consolidação, há dez anos, as placas de Unibanco e Real começaram a desaparecer das ruas. Mais recentemente, foi a vez de HSBC e Citi deixarem o varejo no país. Prevaleceram os que souberam se adaptar melhor às mudanças, com destaque para Itaú, Bradesco e Santander.

Essa capacidade de sobrevivência, no entanto, levou as instituições a uma preponderância no mercado que não é simples de ser desafiada de forma significativa por concorrentes. “Aqui, os bancos têm domínio de oferta de crédito. Com isso, não há competição forte”, diz Alberto Borges Matias, professor aposentado da USP e presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (Inepad).

Dados do BIS indicam que, com um mercado de capitais ainda em desenvolvimento, o setor bancário é responsável por 94% do crédito ao setor privado no país. A relação entre crédito e PIB gira em torno de 60%. Para Matias, não há razão para acreditar que a demanda dos brasileiros por financiamento seja tão menor que a observada nas maiores economias do mundo, onde o crédito total ao setor privado representa de 150% a 200% do PIB. E é essa diferença entre oferta e demanda que dá poder aos bancos, diz ele.

O Banco Central rechaça a ideia de que concentração reduz competição. “É um falso dilema. Tirando os Estados Unidos, em todos os outros países há de quatro a seis bancos com fatia relevante do mercado, mas eles competem entre si. Dizer que não há competição é não conhecer a realidade do mercado”, afirma Otávio Damaso, diretor de regulação do BC.

Para Carlos Macedo, analista do Goldman Sachs, a concorrência entre as instituições financeiras existe, mas não é tão franca e aberta como poderia ser. “Basta ver que a publicidade dos bancos geralmente é institucional, não costuma falar sobre preço.”

Segundo ele, a concentração de ativos é razoavelmente grande. “Mas, no caso das agências, chega a 90%. Não há nada parecido no varejo em outros países”, diz Macedo, para quem, ao tentar preservar a estabilidade financeira, o BC acabou deixando de lado a concorrência. “Não sei se tem como voltar atrás”, afirma.

“Num ambiente com muita instabilidade, é vencedor quem é mais cauteloso”, afirma Rubens Sardenberg, diretor de regulação prudencial, riscos e economia da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Segundo ele, “a supervisão [bancária] que temos aqui é um ativo do país”.

Sardenberg diz que o tamanho do Brasil e sua diversidade geográfica impõem aos bancos a necessidade de operar em grande escala, mas não há impedimento técnico ou regulatório para que surjam concorrentes.

Para o advogado Alexandre Ditzel Faraco, sócio da área de concorrencial do escritório Levy & Salomão, o fato de um mercado ser concentrado não leva à conclusão direta de que não há competitividade. Mas em mercados concentrados, diz ele, é mais fácil haver cartéis explícitos ou arranjos informais, em que os agentes não se atacam para preservar as margens.

Uma maneira de checar se há baixa concorrência em um mercado concentrado é olhar para outros países. “Se as margens ou a lucratividade são muito maiores que em outros lugares, talvez seja um indício de falta de competitividade”, diz Faraco.

Nos dados levantados pelo Valor, os bancos brasileiros têm historicamente os maiores retornos sobre o patrimônio líquido entre os países observados, embora a rentabilidade tenha diminuído na última década. Mais recentemente, está perto de 15% ao ano, com a média puxada para baixo pelos bancos públicos. Itaú e Bradesco, na ponta de cima, ainda ostentam taxas ao redor de 20%.

O patamar médio recente é próximo do que se observa no Canadá e na Austrália, dois países que têm nível de concentração bancária similar à do Brasil, e que costumam ser citados por banqueiros locais como mercados mais comparáveis do que o americano ou o europeu.

A diferença em relação a Canadá e Austrália vem da composição do retorno. “No Brasil, os bancos fazem o resultado em cima de spreads elevados, já que o volume de crédito é baixo. No resto do mundo, se faz com volumes elevados e spreads menores”, diz Matias, do Inepad.

É comum que se faça a associação entre o lucro dos bancos e os juros elevados cobrados nos empréstimos, em especial porque saltam aos olhos os 324% ao ano do cheque especial e os 328% do rotativo do cartão de crédito. Segundo dados de crédito do Banco Central, essas duas linhas ainda são responsáveis por quase metade da receita dos bancos com crédito a pessoa física.

As instituições alegam que as taxas cobradas refletem custos mais altos que os de outros mercados. A inadimplência é o maior deles, mas há outros. Estudo da Accenture encomendado pela Febraban com o intuito de se defender de críticas também aponta taxação maior sobre o lucro – com alíquota nominal de 45% -, cobrança de tributos sobre os empréstimos, recolhimento compulsório, descasamento de prazo fiscal e contábil para reconhecimento de perdas por inadimplência (que dificulta o aproveitamento do crédito tributário) e burocracias do país.

Ganho com spread de juros, mesmo após perda com calote, é mais que o dobro do visto em outros países

De fato, a inadimplência local é muito superior a qualquer referência internacional, alimentada em boa parte pelos juros elevados, num autêntico “efeito Tostines” (é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?). Os calotes consumiram cerca de 35% do spread bruto entre 2011 e 2017 no Brasil, ante 11% no Canadá e 9% na Austrália. Spread bruto, ou margem financeira bruta, é a diferença entre quanto os bancos ganham de juros em empréstimos e na carteira de títulos e quanto gastam para captar recursos de terceiros por meio de contas de depósito, poupança, letras financeiras e outros instrumentos.

Porém, mesmo quando se descontam as perdas com inadimplência, a diferença é significativa. Os bancos brasileiros ganham 3% de margem de intermediação financeira líquida, em média, sobre o ativo total (incluindo ativos que não rendem juros) – o dobro da observada nas instituições canadenses e australianas. Quando se consideram apenas ativos que rendem juros, a margem líquida aqui chega a 7% nos bancos privados. Já a alavancagem, calculada pela razão entre ativo total e o patrimônio líquido, é de 13 vezes no Brasil, ante média de 17 vezes nesses dois países. Se o nível de alavancagem fosse semelhante ao deles, o retorno dos bancos locais seria maior que o dos pares internacionais.

Depois da crise de 2008, por exemplo, os grandes bancos americanos foram obrigados a reduzir a alavancagem para um nível próximo ao observado no Brasil, mas isso levou o retorno sobre o patrimônio a cair de mais de 20% para um intervalo entre 5% e 10% nos últimos anos.

No caso brasileiro, ainda entra na conta de custos extras do sistema a herança de um período inflacionário que obrigou os bancos a conviver com um nível elevado de recolhimentos compulsórios e a manter uma estrutura pesada para processar transações em tempo real. “O sistema financeiro aqui tem uma tecnologia que é brilhante e única no mundo. Mas isso custa”, afirma Matias, do Inepad.

Se o spread não explica sozinho o resultado dos bancos, o que então permite que eles tenham retornos pelo menos compatíveis com o de seus pares internacionais mesmo com custos mais elevados?

Um auditor conhecedor do setor diz que um diferencial dos grandes bancos sobreviventes do mercado brasileiro, além da capacidade de se prevenir ante crises futuras, é ter uma base diversificada de produtos, que lhes permite calibrar o modelo de acordo com diferentes cenários. “Quando os empréstimos estão ruins, eles param e reforçam garantia ou aplicam em títulos públicos.”

Os especialistas citam ainda tarifas, produtos de seguridade como previdência e capitalização, e a prestação de serviços (administração de fundos, credenciamento de cartões e corretagem) como outras fontes relevantes de receita. “Nesses momentos de crise, os bancos aumentam os preços e passam a cobrar sobre coisas que não cobravam”, resume um executivo que já ocupou o alto escalão de uma grande instituição. Ele se refere, por exemplo, ao fim de isenções em pacotes de tarifas bancárias e de anuidades de cartão.

De 2013 a 2017, quando a inadimplência mais prejudicou os balanços, a receita com tarifas dos cinco bancos saltou de R$ 23 bilhões para R$ 39 bilhões, um aumento de 65% no período. Enquanto isso, o IPCA teve alta de 30%, os gastos com pessoal subiram 36% e as despesas administrativas avançaram apenas 13%.

Os dados mostram que o setor financeiro, ao contrário de outros segmentos, tem conseguido por enquanto repassar os custos maiores para os clientes sem que apareçam concorrentes mais eficientes ou que cobrem menos pelos mesmos serviços.

Receita com tarifas dos cinco maiores bancos subiu 65% de 2013 a 2017, ante inflação de 30% no período

O fato de o setor bancário ser estritamente regulado dificulta a ocorrência de uma disrupção, para usar a palavra da moda. E a capacidade de distribuição em todos os cantos do país ainda pesa a favor dos atuais “donos” do mercado, apesar de os canais digitais já serem preponderantes no volume de transações.

Nenhum entrevistado aponta como saída uma cisão das atividades das grandes instituições, a exemplo do que se viu nos Estados Unidos entre os anos 30 e 90 com a lei Glass-Steagall.

No entanto, todos veem nas “fintechs” – como são chamadas as startups do setor financeiro – um caminho para desafiar os bancos pelo menos em alguns nichos. A tecnologia, dizem, é a única maneira de alcançar escala sem precisar abrir milhares de agências nem contratar dezenas de milhares de funcionários.

“Por ser um mercado concentrado e não totalmente atendido, fintechs têm muito potencial no Brasil. São uma oportunidade para competidores que hoje não conseguem entrar”, afirma Macedo, do Goldman Sachs.

A estrada é longa, porém, e naturalmente despertará uma reação das instituições dominantes. Seja para ceder à concorrência ou para se associar aos entrantes. Como disse um banqueiro, os bancos sabem que perderão fatias de mercado para as fintechs, mas buscam se posicionar para defender as áreas nobres do negócio, como crédito e investimentos.

A XP conseguiu incomodar ao usar tecnologia para dar aos investidores acesso a aplicações mais sofisticadas e rentáveis a um custo menor. Atraiu uma leva de competidores, pressionou os bancos a abrir suas plataformas e levou o Itaú a comprar 49% da empresa por R$ 6 bilhões, com opção de assumir o controle a partir de 2033.

Com outra estratégia, o Bradesco desenvolveu em casa o banco digital Next, sem tarifa e com linguagem voltada aos jovens – no rastro do sucesso do Nubank, com seu cartão sem anuidade e planos para avançar em outros produtos.

O GuiaBolso, que agrega informações financeiras das contas dos clientes, é outro que perturba os bancos. A startup é uma pequena amostra do potencial do “open banking”, como é chamada a possibilidade de acesso e até movimentação de recursos de contas bancárias se autorizado pelo usuário. A tecnologia começa a ser adotada na Europa, onde foi regulamentada. “É possível que os bancos virem grandes portais de serviços”, diz um executivo do setor.

No Brasil, BB e Bradesco já manifestaram interesse no open banking. A Febraban diz que ainda não estuda o assunto.

Num cenário em que a nova rodada de inovações vem de fora dos bancos, é preciso que o regulador tenha uma visão dinâmica do mercado para que não se mate uma concorrência incipiente, diz Faraco, do Levy & Salomão. “Não deve olhar só a participação de mercado na data do negócio, mas o potencial de desconcentração que esse elemento novo poderia gerar.”

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